- A gente já pode ir agora?
- Reginaldo! Acabamos de chegar!
- Isso é um não?
- Sim.
- Sim o quê?
- Sim, é um não!
- Tá bom...
Reginaldo estava com as mãos para trás e balançava o corpo como um daqueles bonecos que a criançada adora bater e bater e bater e que nunca cai. Balançava para frente e para trás, acentuando ainda mais a sua barriga. A visão era assustadora.
- Marília, quem é aquele ali?
- Aquele quem, Reginaldo?
- Aquele ali, de bigode ralinho, paletó cinza.
- Deixa eu ver... Aquele é o Lourival. Lembra dele?
- Lourival... Lourival... Esse nome é familiar.
- Você costumava comprar aqueles eletrônicos que ele trazia do Paraguai, lembra?
- Claro! O Lourival. O Mula...
- Mula?
- É, Mula. Esse é o apelido dele. Como ele está diferente! Emagreceu pacas!
- Pois é... Nem todo mundo acha que barriguinha acentuada é sinal de masculinidade, Reginaldo, querido.
Reginaldo não respondeu. Continuou vasculhando a grande sala em busca de algum outro rosto conhecido. A penumbra do lugar não fazia juz ao nome do estabelecimento: Funerária Candeias.
- Eu conheço aquele ali, mas não lembro de onde...
- Quem?
- Aquele ali, perto da coroa de flores verdes.
- Não sei se eu conheço aquele...
- Eu sei que conheço, só não lembro de onde.
- Não é o Ramos?
- O Ramos, claro! Grande Ramos. Acho que vou lá cumprimentar.
- Não! Espera um pouco. A viúva vai dizer alguma coisa...
Reginaldo se aquietou. Poderia não estar gostando daquele programa de quinta-feira a noite, o velório do Vanderlei, colega de trabalho da esposa, mas pelo menos mostraria algum respeito. A viúva se posicionou ao lado do caixão e tinha a expressão vazia quando disse poucas palavras de agradecimento.
- A gente já pode ir agora?
- Só um minuto, Reginaldo. Quero dar os meus pêsames prá viúva.
- Como é o nome dela?
- É... Sônia, Tânia, algo assim...
- Você não sabe o nome da viúva e espera que ela se sinta melhor com o seu cumprimento?
- Reginaldo, não atormenta! Eu vou até lá. Me espera aqui.
- Não quer que eu vá junto?
- Não! Fica aqui!
- Por quê? Não quer que os seus "coleguinhas" me vejam? Você tem vergonha de mim?
Marília não respondeu. Olhou para Reginaldo com os olhos chispando e fez um sinal com a cabeça deixando claro suas ordens de que ele deveria esperar exatamente onde estava. Virou-se e caminhou em direção à viúva.
- Meus pêsames, Sônia...
- É Tânia.
- Meus pêsames, Tânia. O Vanderlei era um bom homem. Vai fazer falta no escritório.
- Obrigada... Você é a...
- Essa é a Marília, colega do Vanderlei. Minha esposa. E eu sou o Reginaldo. Muito prazer, dona Sônia...
- É Tânia.
- Muito prazer, dona Tânia. E meus pêsames...
Marília quase caiu sobre a viúva com o susto que tomou com a "antecipação" de Reginaldo, que estava bem atrás dela, cumprimentando e dando suas condolências à viúva.
- Obrigada...
Reginaldo, com disfarçada impaciência, começou a divagar, procurando nos olhos de Marília algum apoio para suas "colocações".
- Momento difícil... Mas, a vida é assim mesmo, não é? Um dia aqui, no outro lá...
Marília, recomposta, tentava com olhares de compaixão e gestos delicados, desvencilhar-se do constrangimento de ter por perto aquele "monte". Optou pelo silêncio.
- O Vanderlei era um ótimo marido. Estava sempre do meu lado e me acompanhava em tudo. Companheiro, cúmplice, amigo...
Reginaldo, seguindo seu instinto que lhe dizia que a viúva estava precisando desabafar, a interrompeu, não tão delicadamente como gostaria.
- Pois é... Bom, precisando de alguma coisa, é só avisar. Marília, vamos deixar a dona Sônia receber os familiares...
- É Tânia, Reginaldo!
Marília corrigiu impaciente, mordendo os lábios e planejando mentalmente a forma mais dolorosa de acabar com a vida do marido.
- Sim, claro... A dona Tânia. Meus sentimentos, dona Tânia. Vamos indo, Marília?
Sem alternativas, Marília olhou brevemente para a viúva e falou da maneira mais controlada que conseguiu.
- Até logo, Tânia. Precisando, estamos por aqui...
A viúva apenas assentiu com a cabeça, enquanto Reginaldo puxava o braço de Marília em direção à porta de uma maneira delicada, mas firme. Estava decidido a ir embora logo, apesar dos protestos da esposa.
- Vamos ficar para o terço, Reginaldo.
- O terço?
- Sim, o terço. O rosário, a reza, as orações...
- Não vai dar. Combinei com o Mauro de me encontrar com ele prá tomar um chopinho no bar do Alemão.
- Mas hoje é quinta-feira, Reginaldo! Vai beber na quinta-feira?!
- Pois é... Nem todo mundo acha que quinta-feira é dia de semana, Marília, querida.
Ela desistiu.
(original: 30/Março/2006)
segunda-feira, março 22, 2010
Assinar:
Postagens (Atom)