quarta-feira, agosto 11, 2010

AQUI EM CASA?

- Não é que eu te ame menos, docinho, mas é meio difícil entender a razão dos teus pais terem que vir morar com a gente. Por favor, não me leve a mal. Não estou querendo parecer uma daquelas esposas repressoras. De repressora na sua vida, já chega a sua mãe. E eu não quero dizer nada com isso. Deus me livre! Digo isso da maneira mais suave que a tua mente possa absorver, mas você acha realmente que o incêndio que destruiu a cozinha, a sala, um dos quartos e que fez desmoronar o teto do banheiro da casa deles, é motivo para que se mudem prá cá? Eles não cogitaram a idéia de ir para um hotel? Pensa comigo, querido, será que a tua mãe não colocou fogo na casa prá receber o dinheiro do seguro? Ela se preocupava tanto em pagar o seguro em dia... Você sabe do que a velha é capaz. Mas, pelamordedeus, digo isso na maior bondade! Sem pensar que possa ser verdade. E a pocilga, digo, a casa do teu irmão, aquele vagabundo? Ele poderia muito bem acolher os teus pais. Afinal, ele mora sozinho. Claro, não considerando as mulheres que ele leva naquele barraco todas as noites. E não, eu não quero dizer nada com isso. Sem maldade mesmo. Você sabe que eu só falo as coisas pensando sempre no melhor das pessoas. Outra coisa, meu amorzinho, essa dependência da sua mãe já poderia ter acabado. Deus que me perdoe e a você também! Mas ela te ligar quase todo o mês prá saber como você está é um pouco demais, você não acha? Vocês precisam se desgrudar um pouco um do outro. O que é aquilo na noite de Natal? Ela te dando presentes e ainda te abraçando daquele jeito? Com os dois braços! E o teu pai? Chorando que nem uma criança e dizendo que está emocionado? Sem ofensas, benzinho, mas ele já poderia estar num asilo. Eles se mudando aqui prá casa parece meio invasão. Você sabe o tamanho do meu amor por eles, mas não sei se o sentimento deles é o mesmo. Lembra daquela vez que eles vieram nos visitar? Logo que a gente completou quatro anos de casamento? Acho que já era a terceira ou quarta vez que eles vinham nos visitar. Por que aquela choradeira? Por que ficar dizendo que eu te prendo que nem um cachorro? Eles quiseram dizer que eu sou uma cadela? Será que foi isso? Então fofucho, pensa bem. Se eles entrarem agora na nossa vida, talvez tenhamos que mudar muito a nossa rotina. É isso que você quer? Te peço só uma coisa: assim que você tomar a sua decisão, por favor pede prá eles pararem de me olhar com essa cara de cachorro perdido e leva eles de volta pro carro. Eu não quero que eles pensem que eu estou achando que eles querem se intrometer na nossa vida. Eu não quero que eles pensem mal de mim. Você sabe o tamanho do meu amor por eles...

(original: 22/Junho/2005)

segunda-feira, junho 07, 2010

ALMAFÚRIA

É só clicar http://www.myspace.com/almafuria e conferir o resultado de três anos e uns quebrados de muito trabalho, esforço e dedicação. Rock'N'Roll 4ever!

segunda-feira, março 22, 2010

NO VELÓRIO

- A gente já pode ir agora?
- Reginaldo! Acabamos de chegar!
- Isso é um não?
- Sim.
- Sim o quê?
- Sim, é um não!
- Tá bom...

Reginaldo estava com as mãos para trás e balançava o corpo como um daqueles bonecos que a criançada adora bater e bater e bater e que nunca cai. Balançava para frente e para trás, acentuando ainda mais a sua barriga. A visão era assustadora.

- Marília, quem é aquele ali?
- Aquele quem, Reginaldo?
- Aquele ali, de bigode ralinho, paletó cinza.
- Deixa eu ver... Aquele é o Lourival. Lembra dele?
- Lourival... Lourival... Esse nome é familiar.
- Você costumava comprar aqueles eletrônicos que ele trazia do Paraguai, lembra?
- Claro! O Lourival. O Mula...
- Mula?
- É, Mula. Esse é o apelido dele. Como ele está diferente! Emagreceu pacas!
- Pois é... Nem todo mundo acha que barriguinha acentuada é sinal de masculinidade, Reginaldo, querido.

Reginaldo não respondeu. Continuou vasculhando a grande sala em busca de algum outro rosto conhecido. A penumbra do lugar não fazia juz ao nome do estabelecimento: Funerária Candeias.

- Eu conheço aquele ali, mas não lembro de onde...
- Quem?
- Aquele ali, perto da coroa de flores verdes.
- Não sei se eu conheço aquele...
- Eu sei que conheço, só não lembro de onde.
- Não é o Ramos?
- O Ramos, claro! Grande Ramos. Acho que vou lá cumprimentar.
- Não! Espera um pouco. A viúva vai dizer alguma coisa...

Reginaldo se aquietou. Poderia não estar gostando daquele programa de quinta-feira a noite, o velório do Vanderlei, colega de trabalho da esposa, mas pelo menos mostraria algum respeito. A viúva se posicionou ao lado do caixão e tinha a expressão vazia quando disse poucas palavras de agradecimento.

- A gente já pode ir agora?
- Só um minuto, Reginaldo. Quero dar os meus pêsames prá viúva.
- Como é o nome dela?
- É... Sônia, Tânia, algo assim...
- Você não sabe o nome da viúva e espera que ela se sinta melhor com o seu cumprimento?
- Reginaldo, não atormenta! Eu vou até lá. Me espera aqui.
- Não quer que eu vá junto?
- Não! Fica aqui!
- Por quê? Não quer que os seus "coleguinhas" me vejam? Você tem vergonha de mim?

Marília não respondeu. Olhou para Reginaldo com os olhos chispando e fez um sinal com a cabeça deixando claro suas ordens de que ele deveria esperar exatamente onde estava. Virou-se e caminhou em direção à viúva.

- Meus pêsames, Sônia...
- É Tânia.
- Meus pêsames, Tânia. O Vanderlei era um bom homem. Vai fazer falta no escritório.
- Obrigada... Você é a...
- Essa é a Marília, colega do Vanderlei. Minha esposa. E eu sou o Reginaldo. Muito prazer, dona Sônia...
- É Tânia.
- Muito prazer, dona Tânia. E meus pêsames...

Marília quase caiu sobre a viúva com o susto que tomou com a "antecipação" de Reginaldo, que estava bem atrás dela, cumprimentando e dando suas condolências à viúva.

- Obrigada...

Reginaldo, com disfarçada impaciência, começou a divagar, procurando nos olhos de Marília algum apoio para suas "colocações".

- Momento difícil... Mas, a vida é assim mesmo, não é? Um dia aqui, no outro lá...

Marília, recomposta, tentava com olhares de compaixão e gestos delicados, desvencilhar-se do constrangimento de ter por perto aquele "monte". Optou pelo silêncio.

- O Vanderlei era um ótimo marido. Estava sempre do meu lado e me acompanhava em tudo. Companheiro, cúmplice, amigo...

Reginaldo, seguindo seu instinto que lhe dizia que a viúva estava precisando desabafar, a interrompeu, não tão delicadamente como gostaria.

- Pois é... Bom, precisando de alguma coisa, é só avisar. Marília, vamos deixar a dona Sônia receber os familiares...
- É Tânia, Reginaldo!

Marília corrigiu impaciente, mordendo os lábios e planejando mentalmente a forma mais dolorosa de acabar com a vida do marido.

- Sim, claro... A dona Tânia. Meus sentimentos, dona Tânia. Vamos indo, Marília?

Sem alternativas, Marília olhou brevemente para a viúva e falou da maneira mais controlada que conseguiu.

- Até logo, Tânia. Precisando, estamos por aqui...

A viúva apenas assentiu com a cabeça, enquanto Reginaldo puxava o braço de Marília em direção à porta de uma maneira delicada, mas firme. Estava decidido a ir embora logo, apesar dos protestos da esposa.

- Vamos ficar para o terço, Reginaldo.
- O terço?
- Sim, o terço. O rosário, a reza, as orações...
- Não vai dar. Combinei com o Mauro de me encontrar com ele prá tomar um chopinho no bar do Alemão.
- Mas hoje é quinta-feira, Reginaldo! Vai beber na quinta-feira?!
- Pois é... Nem todo mundo acha que quinta-feira é dia de semana, Marília, querida.

Ela desistiu.

(original: 30/Março/2006)

domingo, fevereiro 14, 2010

ERA ISSO?

- Dessa vez é prá valer, pessoal. Hoje é o último dia! Quem aproveitou, aproveitou. Quem não aproveitou, não posso fazer nada: se estrepou! É isso aí! O fim do mundo chegou! Hoje é o dia do julgamento final. O dia do juízo! Até para aqueles que não tem nenhum! The judgement day! Zéfini procêis! Finito! Caput!

Dessa vez realmente parecia que era prá valer. Não havia dúvidas na voz de Deus. Apareceu de repente e nem pestanejou. Sentenciou as frase com uma firmeza que não deixava margens para interpretações.

- Senhor, é apenas uma metáfora, certo? O Senhor não vai realmente acabar com a gente, vai? Depois de todo o trabalho que o Senhor teve... (era o homem preocupado).

- Sete dias, meu filho. Sete dias... Não foi tanto trabalho assim..

- Mas, acabar com tudo? Assim de repente? Sem aviso?

- Como assim, sem aviso?

A voz de Deus, de repente mudou de tom:

- Depois de tantas catástrofes naturais. Depois de tantas doenças que dizimaram milhões e outras que estão por aí. Depois de tanta complacência com todas as cagadas que vocês fazem de tempos em tempos... E não vem com esse papo de "livre arbítrio", senão começo a me sentir culpado de novo por deixar nas suas mãos o destino desse planeta tão bacana. Dê uma olhada na sua história. Guerras, mortes, destruição do seu próprio ambiente, violência sem medidas. E você ainda diz: sem aviso?

- Senhor, como sempre, esse cavalheiro denominado "homem", está metendo os pés pelas mãos... Daqui a pouco vai começar a chorar... E então... Diga-me uma coisa Senhor... Aqui, só prá mim: o negócio é sério mesmo? (era a mulher desconfiada).

Deus falou alto e claro:

- É sério!

- Será que não podemos conversar. Negociar umas condições, tipo assim: dizima todo mundo, tudo bem. Mas poupa alguns milhares, eu inclusive, e começamos tudo de novo?

- Sinto muito, minha filha. Acho até que dei chances demais. Criei a essência humana baseada na harmonia e na força de toda a natureza que cerca seus corpos. Vocês não se deram conta e destruíram quase toda essa natureza, destruindo a si mesmos. Sempre tiveram o poder para comandar o mundo e, de alguma forma, o fizeram. Mas, não da forma como deveriam. Não da forma que transformaria esse planeta num lugar seguro, divertido, limpo, harmônico.

- Mas tio... E eu? Tenho ainda muita vida pela frente. E, além disso, a Letícia ainda não devolveu a minha Barbie. (era a criança assustada).

- Na real, minha criança, você é a criatura que carrega toda a esperança desse mundo. O fato de eu acabar com ele é uma outra história. Esse planeta já deu o que tinha que dar. É lindo, mas a grande maioria não soube apreciar toda a beleza que eu ofereci. E olha que eu não pedi nada em troca. Então, minha querida, fica tranqüila, que não vai doer nada. Agora, dá licença...

Puff! E foi-se! Sem mais nenhuma explicação, Deus acabou com o mundo. E realmente, Ele tinha razão: não doeu nada...

- Bom, e agora?
- E agora, o quê?
- O que sobrou? O que resta dizer?
- Nada, ué! Acabou-se...
- Como assim? Era isso? Vai ficar esse silêncio todo? Nenhuma mensagem? Nenhuma saída de mestre? Nenhum fim filosófico?
- Não... Pelo menos, não nesse texto...
- Próximo, por favor!

(original: 31/Agosto/2005)

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

PAN NÃO VEM!

A reunião está para começar e todos estão presentes.
Com exceção de Pan, é claro...

Pan, sempre atrasado. Sempre festejando em alguma caverna ou à beira de alguma lagoa ao som de uivos, sibilos e cânticos estranhos. Sempre animando o grupo, como um anfitrião invasor. Quando não está com seus comparsas que, por uma conjuntura absurda de fatos, poderíamos ser eu e você e mais alguns mortais, está de ressaca, com um cálice vazio na mão, brindando sozinho rente ao precipício. Quanta inocência... Pensar que a existência possa ser sempre festejada com rodas de mãos dadas em volta de fogueiras acesas em qualquer lugar.

Resolvem adiar o início das considerações.
Sem Pan, não há como deliberar...

Pan, sempre presente. Nos lugares mais inusitados, mas sempre presente. O volume da música um pouco mais alto, os sentidos um pouco mais aguçados pelo vinho, aquela vontade coletiva de ser um pouco mais e de compartilhar a alegria... E lá está ele. Acendendo mais um incenso e pronto para, mais uma vez, reunir o infinito do universo com a certeza da mortalidade. Nessa mistura insólita, todos tendem a esquecer quem comanda o espetáculo da noite. Mas Pan não esquece. E distribui olhares pela turba.

Dois dias, três dias... "Pan não vem!", sentenciam alguns.
A reunião está cancelada.

Pan é assim. Não se sente, de maneira alguma, responsável pelas responsabilidades alheias. Sabe do que é capaz e sabe porque foi criado. Por que se preocupar, então? Aliás, a bem da verdade, são seus os poderes de impulsionar a irresponsabilidade. Tem plena consciência disso. Brinca de marionetes cada vez que sente o perfume daqueles que estão dispostos a jogar para longe a fria solidão. Pan é assim. Seus atos e o seu destino se encontram e se encerram na celebração da vida.

(Inspirado nas viagens conscientes ao subconsciente de Roy Bowers (vulgo Robert Cochrane) - "Os bosques são sombrios e terríveis e entra-se neles atravessando um rio. Ali, o covarde se intimida, o pusilânime foge, pois é ali que o iluminado toca o corneta de chifre retorcido e encara a face do inimigo que nenhum homem pode derrotar. Dos outros planos, eu não tenho conhecimento. Exceto no meu subconsciente, como todos nós temos. Tanto conhecimento já foi perdido e há tão pouco tempo para encontrá-lo novamente...").
 
(original: 01/Julho/2005)

quarta-feira, janeiro 27, 2010

ENTRE UM FARELO E OUTRO

- Sonhei com a tua mãe essa noite?
- É mesmo?
- Foi.
- E aí?
- Nada demais... Vi ela na beira de um abismo.
- Nossa! Ela estava bem?
- Bem bêbada.
- Nossa! Mamãe não é de beber.
- Não que a gente saiba.
- Como assim?
- Nada não...
- E aí. O que mais você viu?
- Alcança a margarina, por favor? Bom, você sabe, sonho é sonho.
- Como assim?
- Nem sempre faz muito sentido.
- Como assim?
- Ela estava bêbada e agarrada no pescoço do Agenor.
- Do Agenor? O nosso vizinho?
- É.
- Que estranho...
- É...
- Realmente, sonho nem sempre faz muito sentido.
- Pois é...
- Imagina, a mamãe nem conhece o Agenor.
- Não que a gente saiba.
- Como assim?
- Nada não. Ela caminhava cambaleando na beira de um abismo, segurando uma garrafa de rum, agarrada no pescoço do Agenor e uivando que nem uma loba...
- Nossa! Que maluquice.
- Sonho é sonho.
- E o que mais?
- Deixa eu ver se eu lembro... Alcança o açúcar, por favor? Ah! Entre um uivo e outro ela dizia o nome do teu pai e caia na gargalhada.
- Nossa! Será que isso quer dizer alguma coisa?
- Quer geléia?
- Agora fiquei um pouco preocupada. Será que a mamãe está bem?
- Claro que ela está bem. Vem cá. Termina o teu café.
- Acho que vou ligar prá ela.
- Mas amor, é cedo ainda. Ela deve estar dormindo. E hoje é domingo.
- Eu vou ligar!

Saiu da mesa, pegou o telefone e discou.

- Alô? Mamãe?
- Não. Não é a mamãe...
- Quem é que está falando?!??
- Aqui é o Agenor.

(original: 22/Março/2006)

segunda-feira, janeiro 25, 2010

ENCONTREI UM NÓ

Talvez seja o pó palpitante da minha mesa, mas parece que a minha visão não vislumbra mais como antes. Chego à essa conclusão congruente depois de pensar pensamentos associados a associações mentais mirabolantes, como sempre. Tentar organizar organismos que circulam sistematicamente na mente não é tarefa das mais fáceis. Falácias indicam os incidentes permanentes no interior da minha cabeça sob pressão e que são pertinentes a assuntos suntuosos e obscuros sobre várias coisas. Tudo ao mesmo tempo.

Talvez seja o tédio sem remédio que insiste em instigar o meu cérebro a buscar o divino no simples e implícito ato de continuar respirando, mas parece que o entorpecimento assentou moradia. Achei que estava sonhando sonhos de sonâmbulos onde tudo é palpável, mas nada é real. Circulo pela casa na busca brusca de algo que não conheço, mas sei que mereço. Acordo atordoado, com hematomas e sintomas estranhos. Palmas suadas e pés sujos.

Talvez seja a falta de coerência corrente que me entrega e atesta que o meu raciocínio é lento, mas tento ver sentido no tropeço e permaneço caído, depois do tombo. Vou ao chão sem proteção e, mais por preguiça do que por incapacidade de levantar, fico sentado ao lado da minha alma que almeja algo mais do que o simples estar por aqui. Quem sabe o que se abre diante de quem quer enxergar a chuva e cheirar o cheiro do que existe além desse muro? Quem sabe?

Talvez seja essa espera que preserva e perpetua a nua realidade de que, na verdade, nada muda, mas percebo desde cedo que minto ao reclamar a posse do que não me pertence. Sem exceções iniciais, já que não compreendi o objetivo subentendido no começo disso tudo, a regra rege o resto da jornada. Um traçado amassado pelo peso pesado da rotina que domina as nossas ações e reações automáticas ao que quer que aconteça, com ou sem a nossa presença. Percebo que diante do desejo de acertar o passo, penso em seguir adiante, não obstante, tudo ao meu redor, em redemoinho, tenha sempre o mesmo destino: o fim.

(original: 23/Setembro/2005)

quarta-feira, janeiro 20, 2010

QUANDO EU NASCI

Quando eu nasci, já fui logo apanhando. Um tabefe na bunda e "vamos acordar prá vida, guri!". Como eu estava em posição invertida, o traseiro foi a primeira parte do meu corpo a sentir frio e a encarar a luz do dia. Abri o berreiro e, como um bezerro, saudei a parteira com um puta grito e com a cara enrrugada. É claro que não me foi dada a opção de permanecer mais um tempinho naquele marasmo contemplativo, envolto por aquela gosma quente. Se a tivesse tido e tivesse a consciência do que isso poderia significar, talvez ficasse um pouco mais. Estadia grátis, pensão completa, o que mais eu poderia querer? A vista não era lá essas coisas mas, nem tudo é como a gente quer mesmo...

Quando eu nasci, já fui logo estigmatizado como "o que talvez dê menos trabalho". Afinal, se eu desse mais trabalho do que o meu irmão, que havia chegado alguns anos antes, talvez meus pais tivessem perdido toda a fé na missão de procriar (o que, felizmente, não aconteceu, pois alguns anos depois, deram uma nova festa lá em casa e o meu irmão mais novo chegou). O que restava, além da placenta pingando, era a esperança de que eu poderia ser alguém que faria com que eles se orgulhassem, assim como era o meu irmão: alguém de quem eles se orgulhavam. Quanta expectativa, quanta ansiedade e quantos planos autenticados no cartório da alma enquanto olhavam aquele cabeçudinho com apenas alguns minutos de vida...

Quando eu nasci, já fui logo sendo o alvo de toda a atenção. Naquele instante, em que o primeiro sopro percorre as vias respiratórias até chegar no fundo dos pulmões, impulsionando ainda mais o coração, fui o cara mais importante do mundo. Todo o esforço dos próximos anos serviria, em última análise, para afastar de mim as dificuldades e a dureza da vida. E todo o leite da casa (ou do peito da minha mãe) serviria apenas para um propósito: manter abastecida a minha pequena barriga. Devo confessar que era esse o assunto que mais me interessava naquela hora...

Quando eu nasci, já fui logo percebendo o quanto meu corpo era frágil e dependente, assim como todos somos quando chegamos por aqui. Se pudesse me observar, sabendo o pouco que sei agora, veria o quanto a minha vida era simples. Importante, mas simples. Era só respirar! Mamar quando chegasse a hora, desenvolver técnicas para arrotar e sujar as fraldas sem me preocupar com o cheiro. O que mais eu poderia querer? Sonhar em ser alguém que faz a diferença? Viajar pelo mundo? Talvez. Mas, deixei para me preocupar com isso bem mais tarde. Afinal, naquele dia, eu estava apenas nascendo...

Quando eu nasci, a vida abriu um sorriso e me pegou no colo.

(original: 27/Outubro/2005)

terça-feira, janeiro 19, 2010

O FUNERAL

Estava lá. Não havia dúvidas. O morto era mesmo aquele homem deitado no caixão. Pálido, impávido e pronto. Talvez até ansioso para conhecer o Cara. Ou o Bicho. Não se via mais a energia rosada no seu rosto e nem brilho em seus cabelos. A fonte esgotara. Era só uma figura de ossos e músculos sem movimento. Pés juntos e mão postas. Boca fechada e, se observada com atenção, guardando um sorriso sacana. O caixão era comum. Confortável, mas não de primeira. Definitivamente, não de primeira. "Assim como não foi a minha vida", poderia estar pensando agora. Tecido vermelho e adornos prateados. Até que era aceitável. Os vermes, com certeza, reclamariam. Mas era o que poderia oferecer no momento. Quem sabe, numa próxima morte, um caixão melhor.

Com muita sorte e sendo um bom homem, seguiria para cima. Sendo como a maioria ali presente, iria diretamente para baixo. Sem escalas. Sem paradas e em linha reta. "Quem sabe? Uma oração silenciosa poderia me salvar nesse momento!", pensou antes de ver a linha contínua no aparelho que monitorava seu coração. É... Talvez aquela oração o levaria aos céus. Conheceria São Pedro. Contaria uma piada antes de passar pelos portões do paraíso. E, com um tapinha nas costas, algum anjo faria o seu check in. Mas... Talvez a intenção da oração fosse descoberta e a passagem seria só de ida para os malditos e fedorentos resorts do inferno. Toparia com Lúcifer. Tentaria argumentar que fora o homem que todos esperavam que ele fosse e ouviria, entre gargalhadas sombrias: "Deveria ter tentado ter sido mais!" e, com uma garfada no traseiro, o próprio nefasto o levaria a conhecer os famosos círculos descritos por Dante. Ainda teria tempo de pensar: "Cadê o Virgílio...?"

Mas ainda continuava deitado ali. Parado. Como todos esperavam. Afinal, havia batido as botas. De uma forma comum. Sem muito alarde e até sem muita surpresa. Uma vida exagerada o levou a uma morte prematura, mas não fora do comum. "Quem procura acha...", "Deu sopa quente pro azar...", "Não me surpreende que tenha ido tão cedo...", "Também, com tudo o que comia e bebia...". Esses pensamentos percorriam a mente dos presentes na pequena sala escura. "Bem que eu poderia ter deixado de devolver aquele dinheiro que esse infeliz me emprestou...". Todos com aquela cara de mofo e olhos meio arregalados diante da morte ao vivo. Bem ali, na frente deles. As mãos suadas de alguns. Trêmulas de outros. E no bolso de vários. Trajes pretos. Atitude ressentida.

E, durante a saída da funerária, no percurso lento dos carros, na chegada ao cemitério, alguns, mais tarde, jurariam ter ouvido várias vezes: "Hey! Aqui vou eeeeeuu!". Talvez fosse só o vento.

(original: 23/Junho/2005)

domingo, janeiro 17, 2010

NA CALÇADA

- É compadre...
- É o quê, compadre?
- Ninguém prá nós olha.
- Pior...
- Nem mulher com roupa e nem mulher sem roupa.
- Mulher sem roupa é que prá nós não olha mesmo!
- Ninguém prá nós olha...
- Nem a meninada que corre na nossa frente...
- Atrás da bola? Nem a meninada prá nós olha.
- Pior que nem...
- E nem a carola que reza...
- De cabeça baixa e segue prá igreja?
- Nem ela prá nós olha.
- Ela é que não olha mesmo!
- E o peão suando e correndo...
- Atrasado pro trabalho na obra?
- Esse mesmo...
- Nem ele prá nós olha.
- Pior...
- Pior? É até melhor que ele prá nós não olhe.
- Melhor!
- Nem a madame com o cachorro no colo...
- E com o chapéu cheio de penugem verde?
- Essa mesmo!
- Nem ela prá nós olha...
- Pior... Nem ela.
- Mas e nem a que vende na esquina...
- O corpo ou as flores?
- A que vende as flores. Essa prá nós não olha!
- E a que vende o corpo...
- No meio do dia e da noite?
- Essa.
- Essa prá nós olha, aponta e ri.
- Pior.

(original: 18/Abril/2006)

segunda-feira, janeiro 11, 2010

NÓRDICA O QUÊ?!

- Laércio! Aonde você vai?

- Laércio, tia? Laércio? Já falei mais de uma vez: meu nome de batismo não condiz com a minha presença física, emocional e espiritual nesse mundo. Prefiro ser chamado de Gleipnir¹ que, mesmo não sendo um nome de verdade, define bem o meu objetivo nesse planeta. Vou me encontrar com Valquíria². Ela me espera nos portais do shopping.

- E essa indumentária, Laércio?

- Gleipnir, já falei! Veja bem, tia Lola, em relação à moda, e não que isso faça alguma diferença para mim, eu estou à beira do precipício, entre o campo de flores dos normais e o abismo do ridículo. Um anel a menos e eu estaria correndo como um tolo pelo primeiro. Um piercing a mais e eu estaria caindo vertiginosamente no segundo. Então, esclarecidas as dúvidas, estou debandando.

- Sei... Então... Gladimir, me diz uma coisa: Valquíria é a aquela moça que esteve aqui em casa outro dia? Aquela de cabelo vermelho e que não disse uma palavra?

- Palavras são desnecessárias e Valquíria está acima dessa compulsão humana em falar, falar, falar... Valquíria não sofre dessa ânsia de se comunicar verbalmente e vive em silêncio, em comunicação apenas com sua própria alma. E é Gleipnir, tia!

- Valquíria... Mas o nome dela não é Lucimara?

- O nome de batismo de Valquíria não condiz com a sua presença física, emocional e espiritual nesse mundo. Tia, eu estou atrasado e as estrelas já estão altas no céu. Preciso correr como o vento, antes que a praça de alimentação feche.

- Leva um casaco, Laércio.


...
Agora, a parte interessante sobre Mitologia Nórdica e que pode acrescentar alguma coisa:

1. Gleipnir é um grilhão macio como a seda, forjado pelos anões, a pedido de Odin, para prender Fenrir até a chegada do Ragnarök³. Foi forjado com ingredientes muito especiais: o som do passo de um gato, uma barba de mulher, as raízes de uma montanha, os tendões de um urso, a respiração de um peixe e a saliva de um pássaro. Mesmo sabendo que um dia Fenrir se libertaria desse grilhão e causaria a morte dos deuses e a destruição do mundo, os deuses preferiram não o matar. "O que tem de ser, será.", disseram.

2. As valquírias eram servas de Odin. O termo deriva do nórdico antigo valkyrja (algo como "as que selecionam os mortos em batalha"). As valquírias eram belas jovens mulheres que montadas em cavalos alados e armadas com elmos e lanças, sobrevoavam os campos de batalha escolhendo quais guerreiros (os mais bravos), recém-abatidos, entrariam no Valhala. Elas o faziam por ordem e benefício de Odin, que precisava de muitos guerreiros corajosos para a batalha vindoura do Ragnarök.

3. Ragnarök é a batalha que levará ao fim do mundo (de forma semelhante ao Armagedon). A batalha será travada entre os deuses Aesires e Vanires (liderados por Odin) e as forças do mal, os gigantes de fogo, os Jotuns entre outros monstros (liderados por Loki). Esta batalha não levaria apenas à destruição dos deuses, gigantes e monstros; o próprio universo seria despedaçado irreversivelmente.


Obs.: Nisso tudo, tem algumas palavras e indivíduos que rendem histórias e valem pesquisa (Fenrir, Odin, Valhala, Jotuns, ...). E uma resenha sobre Loki não faria mal a ninguém.
Outro dia...

MELIANTE

- Prezado senhor, estou a lhe abordar com essas palavras, mesmo não tendo qualquer consideração por vossa senhoria, já que não lhe conheço de abordagens anteriores. Uso a palavra "prezado" simplesmente para dar início ao processo de uma maneira que possa causar o mínimo de traumas possível, principalmente para o senhor. Quero deixar claro que a consideração que dispenso pela sua pessoa é nenhuma. Não tenho intenção de ofendê-lo e, muito menos, prejudicá-lo fisicamente. Nesse momento e num futuro próximo, o senhor talvez sinta-se abalado moralmente e até mesmo demasiadamente assustado e paranóico, mas gostaria de dizer que esses sentimentos fazem parte do processo.

- Mas o que você quer de mim afinal?

- Digníssimo senhor, não quero crer que vossa senhoria seja ingênuo ou mesmo imbecil a ponto de não perceber que esta semi-automática que lhe aponto nesse momento, a qual carinhosamente denomino de "ferramenta de trabalho", não deixe claro os meus objetivos. De qualquer maneira, digno-me a esclarecer: desejo transferir todo o seu capital financeiro disponível nesse momento em sua carteira para o meu bolso esquerdo traseiro o mais rápido e discretamente possível, afim de não chamar a atenção dos oficiais de justiça que circulam por essa praça e que, provavelmente, podem causar-me desconforto no caso de perceberem o que está acontecendo. Gostaria imensamente de contar com a vossa colaboração no sentido de acabarmos logo com o processo, evitando assim, constrangimentos maiores.

- Meu Deus, estou sendo assaltado...

- Sinceramente, eu preferia que o senhor não usasse essa palavra tão indigna da minha pessoa. Prefiro usar a expressão "transferência de fundos sem o consentimento e/ou, eventualmente, sem o conhecimento do possuidor do bem e/ou dos bens". Modéstia a parte e, se me permite dizer, criei essa expressão após várias horas de meditação e deliberações mentais a respeito da minha profissão. Portanto, nobre senhor, acabemos com essas argumentações um tanto pragmáticas e façamos dessa transferência algo que nos enriqueça. No seu caso, espiritualmente e no meu, financeiramente.

- Por favor... Pode levar tudo...

- Agradeço imensamente a sua compreensão e quero que fique claro que não é nada pessoal. Como lhe disse antes, não lhe conheço. Também não pretendo formar laços de amizade ou convívio com o senhor. Da mesma forma, peço que não guarde mágoa da minha pessoa e, para o seu próprio bem, procure esquecer o mais breve possível os traços marcantes do meu rosto. Devo informar que esse procedimento será benéfico a todos. Dito isso, me despeço desejando que, pelo menos durante as próximas horas não voltemos a nos encontrar e que, no futuro, se o destino nos reunir novamente, possamos lembrar desse momento com tranqüilidade e satisfação e, quem sabe, repetir a transação. Até logo e tenha um bom dia.

(original: 28/Março/2006)

domingo, janeiro 10, 2010

ESCLARECIMENTO

Buenas!
Alguns dos textos que serão publicados aqui são catarses escritas há algum tempo atrás e que foram publicados em outro site, do qual estou, aos poucos, me desconectando. Entonces, se alguém cruzar com algum que já foi lido, essa é a razão.
Pode ler de novo... ou não.
ALOHA!

...
PS. Agora, olha isso:

catarse (z)
(grego kátharsis, -eós, purificação) s.f.
- 1. Filos. Palavra pela qual Aristóteles designa a “purificação” sentida pelos espectadores durante e após uma representação dramática.
- 2. Método psicanalítico que consiste em trazer à consciência recordações recalcadas.
- 3. Libertação de emoção ou sentimento que sofreu repressão.
- 4. Evacuação dos intestinos. (hahahahahahahaha...)

sábado, janeiro 09, 2010

EU SOU SÓ O QUE CARREGA O CORPO...

E eu continuo apaixonado... Mesmo sabendo que a tua mão esquerda, escondida debaixo do cobertor, segura a faca que tem gravado na lâmina, o meu nome. Amar uma psicopata tem suas doses de aventura e receio. Aliás, receio não... Medo. Pavor, às vezes. Psicopatia assumida inconscientemente. Gentil demais e com a consciência limpa. Considero uma benção acordar pela manhã do teu lado, vivo. Uma sorte danada te ver todas as manhãs, com os meus olhos ainda orbitando as órbitas oculares. Diferente da sua primeira vítima, que não pôde fazer jus ao velho ditado “eu vi tudo, com esses olhos que a terra há de comer”. Vocês os tirou antes de tirar a vida dela. Fome estranha aos olhos dos normais.

Tenho os cabelos da nuca arrepiados a cada jantar. Já vi o quão ágil você consegue ser. Navalha, estilete, folha de papel. Tudo o que corta parece ser apenas uma extensão das tuas mãos e dos teus olhos. Na mira deles, o que respira te ofende. E como te ofendem... Não a ponto de exprimir essa ofensa em palavras, mas em ações grotescas, bizarras. Banhos de sangue, rituais. E no fim, limpeza total. Sem deixar pistas. Deixando apenas marcas de que você, minha psicopata, desfilou sua fúria por aquele corpo. Como a sua vítima de Dezembro passado, antes dos fogos. Desenhos simétricos nas costas. Sadismo pouco é bobagem.

Nunca planejei que acabaríamos assim... Nesse sistema de não planejar nada. Com você seguindo seus instintos todos os dias. E nós dois, todas as noites, revisando cada passo, cada ato, cada golpe. Precisão é o teu nome do meio e, por Deus, como é afiada a tua vida. Teu nome não ouso dizer em voz alta. Mas em sussurros, repito como um mantra: J..., J..., J... Nem rezo mais para que a tua ânsia sossegue. Aprendi a gostar desse jogo onde só você vence. Eu, como mero espectador e cúmplice, aprecio cada movimento e cada esforço na direção da vitória: a morte. Alheia, é claro. E violenta, sem dúvida. Tanta graça e tanta maldade em apenas um rosto.

Há tempos desisti de tentar descobrir a origem desse desvirtuamento do que consideramos normal. O que se passa pela sua mente fica claro a cada flash da lâmina passando bem na minha frente. E cada gota no chão, de suor, sangue, lágrima, deixa claro ao que você veio. Nessa rotina sinistra, apenas me conformo em ser o que carrega o corpo e ajuda a recolher as evidências. O desejo brota num momento ímpar que se repete a cada dia com mais intensidade. E o fim? Acho até que já chegamos lá. Não há como avançar. Nem para o fundo e, muito menos para cima. Nossa almas já foram convidadas para a festa macabra do perdão impossível.

E eu continuo apaixonado...

(original: 04/Abril/2008)