terça-feira, janeiro 19, 2010

O FUNERAL

Estava lá. Não havia dúvidas. O morto era mesmo aquele homem deitado no caixão. Pálido, impávido e pronto. Talvez até ansioso para conhecer o Cara. Ou o Bicho. Não se via mais a energia rosada no seu rosto e nem brilho em seus cabelos. A fonte esgotara. Era só uma figura de ossos e músculos sem movimento. Pés juntos e mão postas. Boca fechada e, se observada com atenção, guardando um sorriso sacana. O caixão era comum. Confortável, mas não de primeira. Definitivamente, não de primeira. "Assim como não foi a minha vida", poderia estar pensando agora. Tecido vermelho e adornos prateados. Até que era aceitável. Os vermes, com certeza, reclamariam. Mas era o que poderia oferecer no momento. Quem sabe, numa próxima morte, um caixão melhor.

Com muita sorte e sendo um bom homem, seguiria para cima. Sendo como a maioria ali presente, iria diretamente para baixo. Sem escalas. Sem paradas e em linha reta. "Quem sabe? Uma oração silenciosa poderia me salvar nesse momento!", pensou antes de ver a linha contínua no aparelho que monitorava seu coração. É... Talvez aquela oração o levaria aos céus. Conheceria São Pedro. Contaria uma piada antes de passar pelos portões do paraíso. E, com um tapinha nas costas, algum anjo faria o seu check in. Mas... Talvez a intenção da oração fosse descoberta e a passagem seria só de ida para os malditos e fedorentos resorts do inferno. Toparia com Lúcifer. Tentaria argumentar que fora o homem que todos esperavam que ele fosse e ouviria, entre gargalhadas sombrias: "Deveria ter tentado ter sido mais!" e, com uma garfada no traseiro, o próprio nefasto o levaria a conhecer os famosos círculos descritos por Dante. Ainda teria tempo de pensar: "Cadê o Virgílio...?"

Mas ainda continuava deitado ali. Parado. Como todos esperavam. Afinal, havia batido as botas. De uma forma comum. Sem muito alarde e até sem muita surpresa. Uma vida exagerada o levou a uma morte prematura, mas não fora do comum. "Quem procura acha...", "Deu sopa quente pro azar...", "Não me surpreende que tenha ido tão cedo...", "Também, com tudo o que comia e bebia...". Esses pensamentos percorriam a mente dos presentes na pequena sala escura. "Bem que eu poderia ter deixado de devolver aquele dinheiro que esse infeliz me emprestou...". Todos com aquela cara de mofo e olhos meio arregalados diante da morte ao vivo. Bem ali, na frente deles. As mãos suadas de alguns. Trêmulas de outros. E no bolso de vários. Trajes pretos. Atitude ressentida.

E, durante a saída da funerária, no percurso lento dos carros, na chegada ao cemitério, alguns, mais tarde, jurariam ter ouvido várias vezes: "Hey! Aqui vou eeeeeuu!". Talvez fosse só o vento.

(original: 23/Junho/2005)

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