quarta-feira, janeiro 20, 2010

QUANDO EU NASCI

Quando eu nasci, já fui logo apanhando. Um tabefe na bunda e "vamos acordar prá vida, guri!". Como eu estava em posição invertida, o traseiro foi a primeira parte do meu corpo a sentir frio e a encarar a luz do dia. Abri o berreiro e, como um bezerro, saudei a parteira com um puta grito e com a cara enrrugada. É claro que não me foi dada a opção de permanecer mais um tempinho naquele marasmo contemplativo, envolto por aquela gosma quente. Se a tivesse tido e tivesse a consciência do que isso poderia significar, talvez ficasse um pouco mais. Estadia grátis, pensão completa, o que mais eu poderia querer? A vista não era lá essas coisas mas, nem tudo é como a gente quer mesmo...

Quando eu nasci, já fui logo estigmatizado como "o que talvez dê menos trabalho". Afinal, se eu desse mais trabalho do que o meu irmão, que havia chegado alguns anos antes, talvez meus pais tivessem perdido toda a fé na missão de procriar (o que, felizmente, não aconteceu, pois alguns anos depois, deram uma nova festa lá em casa e o meu irmão mais novo chegou). O que restava, além da placenta pingando, era a esperança de que eu poderia ser alguém que faria com que eles se orgulhassem, assim como era o meu irmão: alguém de quem eles se orgulhavam. Quanta expectativa, quanta ansiedade e quantos planos autenticados no cartório da alma enquanto olhavam aquele cabeçudinho com apenas alguns minutos de vida...

Quando eu nasci, já fui logo sendo o alvo de toda a atenção. Naquele instante, em que o primeiro sopro percorre as vias respiratórias até chegar no fundo dos pulmões, impulsionando ainda mais o coração, fui o cara mais importante do mundo. Todo o esforço dos próximos anos serviria, em última análise, para afastar de mim as dificuldades e a dureza da vida. E todo o leite da casa (ou do peito da minha mãe) serviria apenas para um propósito: manter abastecida a minha pequena barriga. Devo confessar que era esse o assunto que mais me interessava naquela hora...

Quando eu nasci, já fui logo percebendo o quanto meu corpo era frágil e dependente, assim como todos somos quando chegamos por aqui. Se pudesse me observar, sabendo o pouco que sei agora, veria o quanto a minha vida era simples. Importante, mas simples. Era só respirar! Mamar quando chegasse a hora, desenvolver técnicas para arrotar e sujar as fraldas sem me preocupar com o cheiro. O que mais eu poderia querer? Sonhar em ser alguém que faz a diferença? Viajar pelo mundo? Talvez. Mas, deixei para me preocupar com isso bem mais tarde. Afinal, naquele dia, eu estava apenas nascendo...

Quando eu nasci, a vida abriu um sorriso e me pegou no colo.

(original: 27/Outubro/2005)

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